De vez em quando a tecnologia avança tão rapidamente, em saltos provocados por grandes descobertas, que ela nos coloca diante de dilemas que temos pouco entendimento e insuficiente preparo para tomar as decisões corretas. Este é o caso da engenharia genética, em intensa revolução desde que foi criado um método disruptivo de edição de DNA, o CRISPR, que pode mudar profundamente a vida no planeta. A tecnologia coloca em uma das mãos o poder para erradicar doenças como o câncer. Mas deixa na outra mão uma arma capaz de gerar um desiquilíbrio tão profundo que ameaça a existência do Homo sapiens.
O CRISPR deriva de um termo técnico de difícil entendimento para leigos da biotecnologia, mas de fácil compreensão do seu funcionamento. Como se fosse uma “tesoura molecular”, a técnica usa proteína de bactéria para recortar uma parte específica da sequência de DNA e substituir o trecho por um novo código. Inventado em 2012, o CRISPR rendeu no ano passado o Prêmio Nobel às pesquisadoras Emmanuelle Charpentier e Jennifer Doudna.
Por que o CRISPR?
O CRISPR é revolucionário por duas razões. A primeira vem da oportunidade de curar qualquer doença hereditária, como diabetes, distrofia muscular e alguns tipos de câncer. Além disso, pode produzir órgãos para transplante e aumentar a saúde e a longevidade das pessoas. O Brasil possui 13 milhões de habitantes com doenças raras, a maior parte delas de origem genética que o CRISPR, portanto, pode corrigir. Em maio deste ano, no Hospital Albert Einstein, um bebê passou pelo primeiro tratamento de terapia gênica no País contra uma doença hereditária que o levaria a perder a vista.
A segunda razão está no fato do CRISPR ser um método bem mais simples, barato e preciso quando comparado a técnicas de engenharia genética anteriores. Tanto que são reais as chances de pessoas sem especialidade na área e sem a necessidade de grandes recursos conseguirem editar DNA dentro das suas próprias casas ainda nesta década. O biohacker Josiah Zayner vende na internet kits para iniciantes que permitem criar organismos únicos a partir de US$ 169.
O perigo na edição genética
Tornar a tecnologia economicamente acessível a todos constitui uma causa nobre. Dificulta, no entanto, o controle sobre o bom uso dela. Estamos diante de uma real possibilidade de construir geneticamente humanos. Pessoas não só resistentes a microrganismos, como os vírus da Covid-19 e da Aids, mas também superiores em força, agilidade e inteligência. Um super-humano que transforma a desigualdade econômica atual em desigualdade biológica. Temos nas mãos o poder de interferir na evolução de qualquer espécie do planeta, para sempre.
A falta de profundo debate ético entre cientistas, governos e sociedade civil sobre edição genética nos levará a um futuro sombrio e distópico. Nele podemos transformar o Homo sapiens em uma espécie menos “evoluída” que os seres modificados em laboratório. E o que isso muda? Bom, só para ilustrar, havia somente uma pequenina diferença genética entre o Homo sapiens e o Homo neandertalis. Hoje nós estamos vivos. Eles não.
Texto publicado Por Wladimir D’Andrade no jornal Diário da Região em setembro de 2021.